28 de ago. de 2008

Teatro)))
Thomas Bernhard com espírito curitibano
Na peça Árvores Abatidas, dirigida por Marcos Damaceno, a Viena do escritor Thomas Bernhard parece tal e qual Curitiba


Rosana Stavis encarna o narrador de Árvores Abatidas.

Embora nascido na Holanda e radicado na Áustria, o escritor Thomas Bernhard (1931 – 1989) parecia um curitibano. É o que pudemos constatar em Árvores Abatidas, romance de Bernhard que foi adaptado pela primeira vez para o teatro pelo diretor Marcos Damaceno. A montagem ficou em cartaz durante o mês de julho e início de agosto no galpão que Damaceno utiliza como teatro nos fundos de sua casa, na rua 13 de maio.

“Os vienenses não podem ver uma pessoa boa, importante, e um dia derrubam-na como a um monumento que não lembram que eles próprios ergueram ali.” O que dizer de uma frase como essa, presente em Árvores Abatidas?

Impossível não comparar a autofagia vienense, que é escancarada nessa obra, com a conhecida autofagia curitibana, já descrita por Jamil Snege na crônica Como tornar-se invisível em Curitiba. “Cada vez que alguém, lá fora, reconhecer com isenção de ânimo que você está produzindo obra ou feito significativo – o seu grau de invisibilidade aumenta em Curitiba”, escreveu ele.

Além de tratar do ambíguo sentimento de amor e ódio por uma cidade que esmaga seus talentos como um moinho, Árvores Abatidas expõe também uma série de críticas ao teatro vienense, o que impressionantemente serviu direitinho para o teatro daqui.

Público, atores, diretores, dramaturgos e críticos, todos os elos da cadeia teatral são detonados em Árvores Abatidas, aspecto da obra que foi especialmente destacado na montagem de Marcos Damaceno, inclusive com a citação de nomes de artistas conhecidos, como o diretor e dramaturgo Felipe Hirsch e a diretora e produtora Nena Inoue.

O enredo
No romance publicado em 1984, um escritor cinquentão – muito parecido com o próprio Thomas Bernhard – narra a experiência de ter ido a um jantar repleto de artistas na casa de um antigo casal de amigos, os Auersberger, que, naquele momento, ele não mais suporta.

O jantar, que conta com a presença de um ator veterano do Burgtheater (teatro nacional austríaco), torna-se um martírio para o escritor, ainda mais que, no mesmo dia, pela manhã, acontecera o enterro de sua amiga Joana, também íntima dos Auersberger e de outros convidados.

A adaptação
Narrada em primeira pessoa no livro, essa história ganhou na peça a forma de um monólogo interpretado pela atriz Rosana Stavis, que fez um papel análogo ao do personagem escritor.

Porém, em suas reflexões sobre seus ex-amigos, sobre si e sobre a cidade, o discurso do protagonista no romance de Bernhard é muito mais dispersivo e menos humorístico do que foi apresentado em cena.

Na sua interpretação, em boa parte do tempo, Rosana Stavis levou Árvores Abatidas para uma comédia escrachada, em que as repetições típicas do estilo de Bernhard foram convertidas em recursos cômicos (não muito risíveis para mim).

As insistentes referências feitas ao “ator que até faz telenovela” (“o ator do Burgtheater”, no original), por exemplo, viraram um bordão, realçado com um “plim, plim” saído do violino de Roger Vaz, músico responsável pela trilha sonora ao vivo.

Diante dessa atuação frenética de Rosana Stavis, tão logo a peça começou, confesso que tentei imaginar como ficaria a montagem com uma interpretação mais contida da atriz. O que felizmente vi concretizado nos momentos em que a personagem dela se recordava de Joana, a amiga falecida, e quando ela relembrava de algumas árias que costumava cantar com os Auersberger.

“Como é bonito ficar sentimental de vez em quando”, diz o narrador a certa altura no livro. Pois foi assim, bonito e sentimental, também o final da peça, com a personagem de Rosana declarando o seu amor à cidade e às pessoas que ela tanto dizia que odiava, para então deixar a casa dos Auersberger (o teatro em que estávamos) e ganhar as ruas.


*Publicado também no portal Digestivo Cultural

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Entrevista)))
“Expurgamos a nós mesmos”
Fotos: Franco Fuchs

Diretor de Árvores Abatidas, Marcos Damaceno (foto) fala sobre a repercussão da peça em Curitiba.

Na estréia de uma montagem já é possível saber se um trabalho tem ou não potencial de seguir adiante, conta o diretor Marcos Damaceno. Com Árvores Abatidas, o diretor logo sentiu que a peça teria uma continuidade.

Porém, novas apresentações dessa adaptação (até então inédita) do romance de Thomas Bernhard irão demorar um pouco, explica ele. De outubro a novembro, a sua companhia tem agendada reapresentações da peça Sonho de Outono, do norueguês Jon Fosse, em São Paulo e no Rio de Janeiro.

A idéia é que Árvores Abatidas retorne aos palcos no início de 2009, no próximo Festival de Teatro de Curitiba, avisa Damaceno.

Na entrevista a seguir, o diretor fala de aspectos polêmicos da primeira temporada de Árvores Abatidas e relata como foi a repercussão dessa “bomba” na cidade.


*

Francofonia - Como foi o encontro com o romance de Thomas Bernhard e o estalo de que ele poderia ser transformado em peça? A sua adaptação é mesmo inédita?
Marcos Damaceno - Pelo que pesquisei sim. Até que provem o contrário, é a primeira montagem do romance.

Eu tinha ouvido falar muito do Thomas Bernhard na faculdade, já conhecia o romance O Náufrago, e algumas pessoas haviam dito que o que eu fazia era parecido com o Thomas Bernhard.

Em 2004, estive em um encontro latino-americano de novos dramaturgos em Córdoba. E lá, um dramaturgo espanhol chamado Paco Sarzozo, que era o coordenador do evento, me disse que o que eu escrevia, pela musicalidade, pela construção das frases, era muito próximo ao Thomas Bernhard.

Na verdade, o Paco me indicou dois autores que eu acabei montando. O Thomas Bernhard e o Jon Fosse, que era um cara que estava começando a estourar em 2005.

Quando voltei para o Brasil, montei primeiro o Fosse [Sonho de Outono] e depois resolvi adaptar o Bernhard. Não optei por uma peça de teatro dele porque as suas peças costumam ter homens mais velhos e eu queria muito fazer um solo com a Rosana [Stavis, atriz, esposa de Marcos Damaceno]. Vi essa possibilidade através do Árvores Abatidas.

Francofonia - A montagem de Árvores Abatidas virou na maior parte do tempo uma comédia. Isso foi intencional?
Damaceno - Seguimos alguns caminhos nos primeiros ensaios até encontrarmos o tom geral do espetáculo. O primeiro mês foi só para achar esse tom. E quando vimos que estava ficando muito sério, afinal o protagonista está sempre criticando, falando mal dos outros, ficamos com medo dele ficar arrogante demais. Então buscamos o humor para tentarmos criar uma empatia maior entre a platéia e a narradora.

Francofonia - Esse humor não foi um tanto exagerado?
Damaceno -Temos que lembrar que o exagero é uma característica do próprio Thomas Bernhard. Exagero na linguagem, pela repetição de palavras e frases, e também pela caricatura que ele faz com os personagens quase estereotipados.

Isso causa bastante humor. Os personagens não têm um desempenho naturalista, uma voz naturalista. O Auersberger, por exemplo, é o bêbado. E se ele era para ser o bêbado, o deixamos ainda mais bêbado.

O estereótipo no teatro normalmente é algo depreciativo. “Ah, esse ator está meio estereotipado ou caricato...” Mas aqui buscamos justamente isso, seguindo o Thomas Bernhard, na nossa visão.

Francofonia - Na sua adaptação você deu um novo sentido para o título de Árvores Abatidas. Por quê?
Damaceno - Lendo o romance, você fica esperando o tempo por uma explicação sobre o título e quando ela chega – tudo bem que não sabemos como é no original em alemão –, parece que não é tão significativa.

O ator do Burgtheater fala rapidamente que ele queria entrar na floresta e ser ele a própria natureza. [“Bosque, floresta, árvores abatidas”, diz ele].

Então demos um outro significado para isso, porque ficava claro para nós, enquanto ensaiávamos, que a Joana era uma árvore abatida e as outras pessoas também eram como as árvores da cidade que, quando cresciam demais e começavam a ficar frondosas, eram podadas.

Francofonia - O protagonista de Árvores Abatidas fala muito mal dos artistas que não deixaram Viena. Ficar na cidade ou sair dela é uma questão que sempre passa pela cabeça de todo artista curitibano, não?
Damaceno - Não há mal nenhum em ficar aqui. Curitiba tem fama de ter bons atores, tem uma tradição teatral forte. Mas há sempre esse discurso de que é preciso ir para São Paulo e Rio de Janeiro porque essas cidades continuam sendo os principais centros culturais.

E tem aquela coisa. Se você é o melhor ator de São Paulo, você não é simplesmente o melhor ator de São Paulo. Você é o melhor ator do Brasil. Agora se você é o melhor ator de Curitiba, você é só o melhor ator de Curitiba.

Então todo mundo busca sair. Inclusive nós, que temos procurado ir com nossos espetáculos para São Paulo e Rio, justamente por essa amplitude que você dá para a sua carreira, essa visibilidade.

Francofonia - Será que essa situação não está mudando, de que um artista bom em Curitiba é apenas bom aqui? Na literatura, por exemplo. Há quem diga fora daqui que o maior contista brasileiro vivo é o Dalton Trevisan...
Damaceno - Talvez de tanto se falar que Curitiba é uma província, que Curitiba não se valoriza, sinto que existe agora um movimento contrário. Inclusive de as pessoas montarem mais autores locais, mesmo que sejam adaptações literárias.

Por exemplo, estão montando aqui no Teatro Novelas Curitibanas uma peça a partir de O Mez da Gripe, do Valêncio Xavier. E também se montam contos do Dalton Trevisan o tempo todo. Aliás, já até se fala que o Dalton é o maior dramaturgo curitibano.

Acho que as pessoas estão se preocupando mais com uma identidade curitibana, paranaense, ou sei lá, sulista. Até a minha companhia mesmo. Por mais que a gente tenha montado Thomas Bernhard, a discussão é toda sobre o nosso meio e a nossa cidade.



"E tem aquela coisa. Se você é o melhor ator de São Paulo, você não é simplesmente o melhor ator de São Paulo. Você é o melhor ator do Brasil. Agora se você é o melhor ator de Curitiba, você é só o melhor ator de Curitiba."

Francofonia - O subtítulo do romance Árvores Abatidas (na tradução de Lya Luft) é “uma provocação”. O Thomas Bernhard chegou a ser processado por provocar pessoas reais no livro, não?
Damaceno - Sim. O Thomas Bernhard realmente conviveu com as pessoas descritas no livro. Todas eram reais. A única coisa que ele fez foi alterar o nome do [Gerhard] Lampersberger, que ele colocou no romance como Auersberger.

A gente viu fotos do Lampersberger, fotos da Joana... O Lampersberger era um músico que compunha com o Bernhard. Eles faziam coisas para o palco juntos e depois romperam.

Quando o Thomas Bernhard lançou Árvores Abatidas, o Lampersbereger leu e falou: “espera aí, esse sou eu!” Não há dúvida. E como ele é esculhambado no romance, ele conseguiu proibir a venda do livro.

Depois de alguns anos é que Árvores Abatidas pôde ser publicado na Áustria. Mas aí o Bernhard, um sujeito difícil, escreveu um testamento no qual proibia a publicação e a encenação das suas obras em território austríaco, após a sua morte.

Isso aconteceu mesmo, por um tempo, depois que ele morreu. Mas um meio-irmão do Bernhard conseguiu dar um jeito de derrubar essa decisão judicial e hoje ele é publicado, montado e reverenciado em toda a Áustria.

Francofonia - Na peça, tal como o Bernhard, você cita nominalmente alguns artistas conhecidos. A escritora Jeannie, por exemplo, é às vezes chamada de Nena (em referência à diretora e produtora curitibana Nena Inoue). Em certo momento ela fala que o único dramaturgo bom é o Felipe (em referência ao diretor e dramaturgo Felipe Hirsch) e ambos, Jeannie-Nena e Felipe, terminam detonados pelo ator do Burgtheater. Como foi a reação das pessoas citadas?
Damaceno - Fizemos essas citações justamente para manter esse espírito provocador do Thomas Bernhard. Na verdade não colocamos tanto opiniões nossas. A gente adora o Felipe Hirsch, por exemplo. Assisti ao Não Sobre Amor e achei lindo, a melhor coisa que vi dele.

Mas a gente retrata o nosso meio. Falamos o que as pessoas falam. Em Curitiba existem essas relações de amor e ódio. O Felipe é um caso. Ele é daqui, mantém um escritório na cidade, e as peças dele não vêm para cá. Ele só fala mal de Curitiba, fala mal dos atores, que eles são vagabundos, preguiçosos. Isso até já virou uma guerra: o Felipe fala mal da classe artística e a classe artística fala mal do Felipe.

Francofonia - E quanto à Nena?
Damaceno - Eu tenho uma relação diplomática com ela. Mas ela também não veio na peça. A gente esperou, esperou, mas ela não veio. Parece que a Nena mandou algumas pessoas assistirem para depois contar para ela. Mas o que está lá é o que todo mundo acha da Nena e ela até sabe que todo mundo acha isso.

Francofonia - E como foi a reação das demais pessoas da classe artística?
Damaceno - Da classe teatral o comentário que mais ouvimos foi: “poxa, vocês são corajosos, hein?” Eles se deleitaram. Como diz o narrador no final de Árvores Abatidas, tudo o que todos sempre quiseram falar, mas nunca falam, o ator do Burgtheater falou.

E alguns se identificaram. A Carmen Jorge [diretora, coreógrafa e performer] disse: “nossa, a Joana [que não sabia se queria ser bailarina ou atriz e depois virou coreógrafa] sou eu!” A diferença é que a Carmen Jorge não se suicidou, mas enfim, ela levou na esportiva e não se ofendeu.

Agora muitos também ficaram numa posição cômoda de achar tudo engraçado, mas no final diziam que não era com eles.

Francofonia - Outro aspecto interessante da peça foi mostrar como a autofagia, que pensamos ser uma característica tipicamente curitibana, também aparece em outras cidades como Viena.

Damac
eno - A autofagia não é uma peculiaridade só de Curitiba. Talvez nas megalópoles, com São Paulo, isso se dilua um pouco. Mas nas cidades que são do porte de Curitiba a autofagia é algo comum.

Numa leitura dramática que fizemos de Árvores Abatidas, uma menina que era de Belém depois me disse: “nossa, durante toda a leitura eu pensei que vocês estivessem falando de Belém!”

Então pessoas de outras cidades também vestiram a carapuça. Isso é bom, porque não queremos que a peça seja tão curitibana que só sirva para nós, até porque pretendemos viajar com esse espetáculo para outros lugares.

Francofonia - Thomas Bernhard, Jon Fosse, Sarah Kane. Pensando nesses autores que você já montou e também lembrando da peça Sobre Tempos Fechados que você escreveu, percebe-se que você tem um apreço por autores e personagens tristes, sorumbáticos, pessimistas, não?
Damaceno - As pessoas falam que montamos peças muitos pesadas, densas, difíceis. Mas essas peças me instigam, me atraem porque aprendo com elas.

Árvores Abatidas, por exemplo, foi uma reflexão para nós, sobre como se dão as relações entre as pessoas, principalmente as relações entre os artistas de uma cidade como Curitiba. A gente aprende muito. Aprende o que não cometer e como não se transformar nessas pessoas ressentidas. Sempre que se reúnem pessoas cai-se nessa amargura. Um falando mal do outro, essa mesquinharia que na verdade faz parte de tudo quanto é área.

E com Árvores Abatidas expurgamos a nós mesmos. Eu até falo: vamos falar mal de tudo o que tiver que falar. Vamos expurgar isso, para que a gente não guarde esses sentimentos que depois acabam dominando a nossa mente e não nos levam a lugar nenhum.

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9 de ago. de 2008

Especial)))
O break no Itália
Em Curitiba, um dos locais mais importantes para o break (um dos quatro elementos do movimento hip hop) fica situado no espaço de um shopping
Foto: Franco Fuchs

Break rola desde o início dos anos 80 no Itália.

Meses atrás, o assunto ganhou destaque nos noticiários. No bairro Portão, jovens vestidos no estilo hip hop foram barrados no mais novo shopping da cidade: o Palladium.

Em compensação, praticamente ninguém lembrou que, no centro de Curitiba, outro grupo de jovens com características parecidas se reúne todo sábado à noite, sob a cobertura do Shopping Itália, sem a menor crise.

E isso acontece desde que o shopping foi inaugurado, em 1983, quando os primeiros b-boys (dançarinos de break) curitibanos, como Vilmar, “Aranha” e “Carioca”, elegeram o piso de granito do Itália como o melhor lugar para dançar.

“A jam session [sessão de improviso] do Itália é uma das mais antigas do Brasil e do mundo em atividade”, informa o b-boy Wagner “Baqueta” aos desavisados. Segundo ele, ao longo do tempo muitos redutos tradicionais do break foram se extinguindo, enquanto o espaço no Itália continua firme, atraindo b-boys e b-girls de todos os cantos, sejam eles da velha ou da nova geração.

Patrimônio do hip hop
Considerado, portanto, um verdadeiro patrimônio cultural do hip hop, o Itália é muito bem preservado por todos os b-boys que dele fazem uso. “É um ambiente familiar. Aqui não rola bebida e praticamente nem cigarro”, diz Baqueta, sendo que esse discurso não é só da boca para fora, como a reportagem testemunhou.

O mais interessante é que essa “abstinência”, ao invés de ser imposta, é algo natural para esses b-boys que levam a sério o que fazem e por isso não ousam comprometer suas performances sob os efeitos do álcool ou do tabaco.

Os b-boys revelam que também se esforçam para que nenhum estranho use outras drogas diante do Itália ou piche o espaço que eles tanto lutaram para conquistar.

Por conta disso, a relação que possuem com a direção do shopping é tranqüila. “Não temos nenhum acordo formal com esses jovens, mas mantemos um bom convívio com eles”, diz Silvio Chultiz, da imobiliária responsável pelo prédio do Itália, lembrando que nunca houve reclamação pela presença dos b-boys.

Unidos nessa simbiose, ganham o break, que mantém sua arte viva no coração da cidade, e o shopping, que vira uma espécie de atração turística, mesmo fechado no sábado à noite.

*Publicado no Jornal TiraGosto e na Revista Idéias de agosto

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Especial Break)))
Até acabar a pilha
Nas noites de sábado, o piso de granito do Itália vira palco para as batalhas de dança entre os b-boys
Foto: Franco Fuchs

Roda de break já virou atração turística.

Um sábado à noite no centro de Curitiba. Por volta das 19h, b-boys e b-girls de diversas partes da cidade começam a se reunir em frente ao Shopping Itália.

Entre um papo e outro, alguém então passa o boné e o pessoal faz uma vaquinha para a compra de oito pilhas grandes. Como não há uma tomada disponível no local, são essas pilhas que alimentarão um daqueles rádios portáteis, à moda antiga, que é trazido por algum b-boy de boa vontade.

(Sem existir uma organização formal que regule esses encontros, às vezes acontece de ninguém trazer o som. O que tira muito a graça da noite, mas não impede que os b-boys aproveitem para trocar idéias ou exibam mutuamente os movimentos que treinaram durante a semana).

Democracia na roda
Assim que a música começa a tocar, os b-boys se dispõem em círculo e, de instantes em instantes, um deles toma a iniciativa e vai para o centro da roda de break.

O b-boy começa fazendo o toprock, uma dança em pé na qual ele apresenta o seu estilo, e só depois desce para o footwork, em que ele dança com as mãos apoiadas no chão, agachado sobre os calcanhares. Depois de desenvolver passos variados, normalmente o dançarino termina sua performance com um freeze, isso é, “congelando” um movimento, ao que é imediatamente substituído por outro b-boy.

Como a reportagem pôde verificar, a roda de break é um espaço democrático, em que qualquer pessoa tem a oportunidade de entrar e dançar. Basta um mínimo de coragem ou cara-de-pau para não se intimidar com os olhares atentos de quem fica em volta. Independente de dançar bem ou mal, todo mundo é sempre incentivado com aplausos.

Batalha de b-boy
Diferente das improvisações descompromissadas que acontecem na roda e que são abertas a todos, quando dois b-boys ou duas crews (grupos organizados de b-boys) decidem instaurar uma “batalha”, a dança fica restrita a esses dois lados que vão duelar. E isso só termina quando alguém ou um grupo se dá por vencido (o que demora) ou por algum outro motivo externo, como quando acabam as pilhas do rádio, por exemplo.

“Nessa hora é como se o outro que está dançando fosse meu inimigo”, reconhece o b-boy Émerson “Piolho” sobre esses momentos de competição. Tais pelejas costumam ser tão catimbadas, que quem assiste a um “racha” pela primeira vez pode até ter a impressão de que uma briga de verdade vai estourar a qualquer momento.

Porém não é o que acontece. Os b-boys explicam que as poses de mau e a postura aguerrida de alguns são parte do jogo e, no geral, quando acaba a roda, tudo fica em paz.

Uma paz que significa, é bom frisar, camaradagem, ausência de violência, e não uma interrupção das batalhas. Embates futuros são sempre estimulados, seja para o “perdedor” tirar a desforra ou para o “vencedor” confirmar a sua supremacia no break. Isso faz os b-boys treinarem ainda mais, o que só eleva o nível de todos.

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Por dentro do break

Break, breakdance, breaking ou b-boying (os dançarinos mais puristas preferem os dois últimos termos às outras variantes) é a dança surgida em meados dos anos 70 nos Estados Unidos, dentro da cultura hip hop. É um dos seus quatro elementos, junto com as artes do DJ, do MC e do grafiteiro.

B-boy é o dançarino de break. O termo foi criado pelo DJ Kool Herc, o “pai” do hip hop. Herc chamava de “break-boys” ou “b-boys” aqueles que começavam a dançar quando ele repetia em seu toca-discos a parte instrumental de uma música, o chamado “break”.

Funk, soul, disco e até danças caribenhas influenciaram o break. Movimentos da ginástica olímpica, de kung fu e da capoeira foram igualmente incorporados pelos b-boys.

“Moinho de vento” (o b-boy gira deslizando com as costas no chão), “head spin” (giro de cabeça no chão) e “flare” (giro com as pernas abertas, como aquele feito no “cavalo” da ginástica olímpica) são alguns dos inúmeros movimentos do break.

O break geralmente é dançado ao som de funk americano, de rap com batidas aceleradas ou com mixagens conhecidas como breakbeats.

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8 de ago. de 2008

Perfil)))
“Até meus 50 anos eu quero dançar break”
João Anselmo Moreira dos Santos, o “Aranha”, conta um pouco de sua história e da história do break em Curitiba
Foto: Franco Fuchs

Aranha: B-boy da velha escola

João Anselmo Moreira dos Santos, mais conhecido como “Aranha”, foi um dos primeiros b-boys e black powers da cidade no início dos anos 80. Mais de duas décadas se passaram e ele continua fiel as suas raízes. Dos pés (que ainda calçam um par de adidas cano alto) à cabeça (com sua indefectível cabeleira black).

João conta que a sua relação com o movimento hip hop começou em 1983, quando ele, que é parnanguara, veio morar em Curitiba após brigar com a sua madrasta. Na capital, como também não se acertou na casa de sua irmã mais velha, a única opção que lhe restou foi morar nas ruas. Tinha apenas 11 anos de idade.

Perambulando sem destino por aí (nessa época sobrevivia oferecendo pequenos trabalhos de casa em casa, muitas vezes em troca de comida), João conheceu alguns moleques que já dançavam break, como Vilmar, “Carioca”, “Celião” e Eddy. João não sabia dançar, mas queria andar com aqueles garotos. Acabou sendo acolhido por eles e logo estava dançando com esse grupo de b-boys diante do recém inaugurado Shopping Itália.

Por que dançar especificamente ali? João responde: “Além do piso ser bom para dançar, ali era o centro de tudo e havia um clima gringo no ar. Era a nossa Nova York”.

Já um b-boy formado, João ganharia o apelido de Aranha depois que tatuou um aracnídeo no braço, e também porque transformou o movimento de break conhecido como “aranha” (em que o dançarino coloca as pernas sobre os ombros) em sua marca registrada.

Estilo brasileiro
Quando o movimento hip hop estava apenas começando em Curitiba e muitos imaginavam que aquilo seria apenas uma moda passageira, João lembra que às vezes pensava: “Um dia essa minha loucura ainda vai ser a de várias pessoas”.

Estava certo. Em pleno século XXI, a cultura das ruas continua atraindo mais e mais jovens da periferia e até de classes mais abastadas. “Os filhos de papai hoje ouvem rap, escutam Racionais… Agora o que é do povo é nosso, eles pensam. Mas não é não”, diz João, indignado com uma banalização que assolou o hip hop.

João também não poupa críticas inclusive a uma parcela de b-boys que praticam o break atualmente. “Eu vejo esse break como uma dança estranha. Antigamente não tinha tanto esse lance de se jogar no chão, de dar cambalhota… São poucos hoje os que dançam realmente em cima [em pé]. Perdeu-se uma essência”, reclama.

Mas independente de todas as mudanças, João, aos 36 anos, faz questão de continuar dançando. “Até os meus 50 eu quero dançar break!”. E do seu jeito: “Não sou xerox de gringo nenhum. Meu estilo é bem brasileiro”.

Comemorando 25 anos de carreira em 2008, tendo participado de grupos como o West Side Breakers, Itália Força Break e Twister Rock Style, e dançado em shows do Sabotagem, Marcelo D2 e Art Popular, João diz que se sente realizado como b-boy, ainda que o break não traga o retorno financeiro que ele merece. Seu maior retorno é mesmo quando as pessoas o reconhecem e elogiam a sua dança.

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